sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Um Olhar Vale mais do que Novecentos e Noventa e Nove Palavras

Caminhava pelo quarto ainda de camisola, os cabelos despenteados revelavam a noite mal dormida. Sua pela clara parecia ignorar o vento frio que entrava pela janela. Chovia. Sobre a cama bagunçada repousava o pequeno baú alheio aos movimentos da moça; todos os móveis a acompanhavam no vai e vem agitado, mas ele prosseguia impassível como se fizesse parte de outra natureza, outro modo de ser e estar. Era uma caixa pequena, de madeira nobre, revestida de um veludo verde suave, com dobradiças douradas. Num passado não muito distante o pequeno baú vivia aberto, revelando um tesouro de valor imensurável e só por estar aberto exalava o cheiro da paixão, das noites de corpos suados, das longas conversas reais e virtuais. Lembrava dos textos, das fotos, das canções olho no olho. Mas depois de tanto tempo fechada, o que ela guardaria?

O silêncio absoluto só era quebrado pela chuva que batia violentamente contra as janelas do ônibus, fora isso todos dormiam; alguns já bem bêbados, outros cansados do amor e mais alguns que dormiam nos braços verdes da natureza, mas ele, ele estava acordado. Seus olhos passeavam pela cidade em meio à chuva; por sob a jaqueta de couro que o protegia do frio que o próprio ônibus criava, uma corrente lançava o gélido pedaço de metal sobre seu peito. Quanto tempo fazia? Uma eternidade? Quem sabe duas? Mas fora ele quem criara essa distância e aprendeu: sentimentos verdadeiros falam mais do que quilômetros. O companheiro ao seu lado roncava com a garrafa de vinho ainda aos seus pés, a chegada parecia distante. Ele amava e nenhuma das convenções sociais o fazia pensar o contrário, e nem mesmo tinham força para fazê-lo viver de outro modo.

As chuvas emblemáticas só cessam no momento certo, e aquele ainda não era o momento. A mesa da cozinha, a que há tantos dias não era usada para uma refeição, estava inerte diante da cena: a dama de camisola deixava seu olhar se perder na xícara de chá de camomila que aos poucos ia colorindo a água. O baú estava lá, fechado, e timidamente o sol começava a nascer. Puxou-o para perto de si e começou a acariciá-lo, como se desse toda vazão a sua memória tátil as lembranças brotavam quase que involuntariamente. Lembrou-se de como ele a segurava, era mais do que pegar era fazer sentir-se segura. As mãos dele eram o número dela costumavam dizer. Lembrou-se que ele não tinha cheiro, tinham aquela barba e sabia olhar e falar com ela como se os dois fossem os únicos habitantes de uma ilha. Essa ilha se chama amor.

Esticar as pernas de verdade depois de dez horas de viagem era uma dádiva. Enquanto todos se preparavam para se alojar ele pegou sua mochila e seguiu outro caminho.

“Aonde você vai?” Perguntou o companheiro que ainda apresentava alguns sinais da ressaca.

“Preciso resolver uma coisa, vou pegar um taxi e até a hora do almoço eu volto.”

“Precisa de ajuda? Quer que eu vá com você?”

“Obrigado, mas eu acho que você precisa descansar bastante.” E rindo, partiu.

Encontrou um taxi rapidamente e depois de indicar o endereço (Rua Clarice Carús Sanches, 720) e coçar a barba apertou forte o pedaço de metal pendurado em seu pescoço. A força da chuva agora atacava a copa das arvores do bairro residencial, a luz do sol já era evidente, mesmo por de trás de tanta tempestade, isso o fez pensar: Seria o amor tão forte para brilhar mesmo com tanta coisa diante dele?

Caminhou para a pequena varanda que havia nos fundos da casa, queria observar melhor a chuva, trazia consigo o baú. O taxi parou em frente ao número 720, pagou e correu em direção de um lugar protegido. Jogou a mochila no chão e tirou a corrente do pescoço. Pensou consigo mesma e percebeu que já tinha gastado muito tempo com aquele assunto, era quarta-feira e ela iria dormir um pouco mais. Observou por alguns segundos a chave presa na corrente dourada, apertou-a forte no punho fechado e lançou seus olhos sobre a campainha. O ultimo gole do chá de camomila foi reconfortante, separou dois saches de chá de morango, seria seu café da manhã junto com alguns biscoitos de manteiga. Respirou fundo, fechou os olhos e tocou a campainha. Subindo as escadas, com o baú a tira colo ouviu sua campainha tocar. A chuva cessou.

Os olhos são as janelas da alma, e aquelas janelas estavam escancaradas revelando todos e quaisquer segredos que pudesse estar oculto lá dentro.

“Oi, tudo bem?”

“Olá, estou bem e você?”

Existem coisas que são indizíveis, fazendo restar apenas o olhar que as diz com maior verdade que as palavras. Perceberam que nada havia mudado, todas as coisas estavam no mesmo lugar: o carinho, o respeito, a admiração tudo no seu devido lugar, como se estivessem guardados numa caixa. Abraçaram-se tão profundamente que mais uma vez suas almas conseguiram se tocar; ele ainda a segurava como ninguém, ela ainda era o seu numero, a ilha, não estava mais deserta. O pequeno baú caiu no chão e a chave foi abandonada ao seu lado.

“Eu te amo.”

No chão a pequena caixa revelou seu precioso tesouro, não foram necessárias chaves, pois ela nunca esteve fechada de verdade. Dentro dela duas pequenas pulseiras, dessas sem quase nenhuma classe feitas na rua, cada uma com um nome bordado trazendo o vermelho, o branco e o preto. Junto com elas duas fotografias “três por quatro”; o interessante é que elas não eram nem um pouco sérias, traziam sorrisos largos e alegres, eram mais do que imagens eram lembranças. Devem ter sido tiradas em alguma cabine de fotos, em alguma estação do metrô, perto de alguma banca que vende pulseiras quase sem nenhuma classe.
Ele a olhou e percebeu que para ela não havia passado um dia se quer, continuava jovem, bela e suave como sempre. Era o momento de saber se ainda existia alguma chance.

“Você ainda me ama?”

“Ainda e sempre.”

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